Por Manoel Justino Bezerra
O ministro Marco Aurélio Bellizze deferiu, em 19 de fevereiro, “pedido de tutela provisória nº 1.920-MT” e concedeu tutela de urgência para que a recuperação judicial de produtor rural submeta não só os débitos contraídos após o registro do produtor rural na Junta Comercial, na forma do artigo 971 do Código Civil, como também para submeter todo e qualquer débito independente da data de sua constituição. Esta decisão está a indicar o caminho da perfeita solução de uma pungente questão que vem atormentando o agronegócio.
Claro, a decisão é liminar, mas indicativa de que os argumentos do produtor rural impressionaram o ministro, segundo o qual “verifica-se, na hipótese dos autos, que a pretensão recursal mostra-se razoavelmente controvertida e suficientemente plausível, a fim de revelar presente a fumaça do bom direito”.
É curioso que a recuperação no agronegócio vem sofrendo resistências, que aos poucos, felizmente, vão sendo afastadas. O primeiro óbice consistia no entendimento segundo o qual o produtor rural não empresário (e que se torna empresário por simples manifestação de vontade na forma do artigo 971 do Código Civil) só poderia pedir recuperação se estivesse inscrito na Junta Comercial há mais de dois anos, exigência do artigo 48, I, da Lei 11.101/2005, a LREF. Este óbice já foi afastado, pois o que a lei exige no referido artigo 48 é o exercício de dois anos de regular atividade e não, dois anos de inscrição na Junta Comercial.
Este óbice surgiu porque houve uma certa confusão com a lei anterior, o Decreto-Lei nº 7.661/1945, que exigia, em seu artigo 158, a prova de “exercer regularmente o comércio há mais de dois anos”, enquanto a lei atual exige “exercer regularmente suas atividades”.
O produtor rural não inscrito na Junta, por óbvio, exerce regularmente suas atividades e pode pedir recuperação com inscrição inferior a dois anos. Neste sentido: AI 2.037.064-59. 2013.8.26.0000 – TJ-SP; AI – CV nº 1.0000.17.026108-5/001 – TJ-MG; AI 2.048.349-10.2017.8. 26.0000 – TJSP; AI 2.251.128- 51.2017.8.26.0000 – TJ-SP; AREsp 896.041 – STJ – (decisão monocrática do Min. Marco Aurélio Bellizze) – j. em 12.5.2016; REsp 1.478.001 – STJ – Rel. Min. Raul Araújo; REsp 1.193.115-MT- Rel. Min. Sidnei Beneti – (este julgado não exige o exercício por dois anos após a inscrição, exige apenas que a inscrição seja anterior ao ajuizamento do pedido de recuperação).
Adotado tal entendimento e admitida a recuperação judicial para empresário rural registrado há menos de dois anos, outro óbice surgiu pois entendeu-se que não estavam submetidos à recuperação os débitos constituídos anteriormente à inscrição do produtor na Junta Comercial. O fundamento de tal corrente era o fato de não poder admitir-se que o credor fosse surpreendido com a nova condição do devedor, ou seja: o banco havia emprestado a uma pessoa física (que não poderia pedir recuperação judicial) e agora via-se envolvido em uma recuperação.
No entanto, e sempre mantido o respeito à corrente contrária, tal argumento não parece que possa se sustentar. Ninguém pode alegar desconhecimento da lei e o Código Civil, de 2002, em seu artigo 971, criou uma situação absolutamente nova, ou seja, admitiu que o produtor rural, por simples manifestação de vontade unilateral, passasse à condição de empresário “caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro”.
Ora, o empresário que está sujeito a registro na forma do artigo 967 pode pedir recuperação judicial e sujeitar à recuperação todos os seus credores, razão pela qual o empresário constituído na forma do artigo 971 também tem este direito. Por outro lado, por conhecer o artigo 971 do Código Civil, qualquer pessoa ou, qualquer instituição financeira sabe que aquele produtor rural pode tornar-se, de um momento para outro e por manifestação unilateral de vontade, um empresário equiparado “para todos os efeitos” a qualquer outro empresário que se constituiu na forma do artigo 967. Portanto, não se pode falar em surpresa.
Outro argumento da corrente que adotou o óbice afirma que o registro na Junta Comercial é constitutivo e não declaratório, argumento que parece de certa forma, irrelevante. De qualquer maneira, o registro não é constitutivo, é declaratório. Imagine-se se um dentista, trabalhando sozinho em seu consultório, registra sua Eireli na Junta Comercial, por engano; claro que não se transformará em empresário. Por outro lado, se um comerciante individual de frutas inscreve-se no Registro Civil, nem por isso deixa de ser empresário, será empresário irregular.
Ou seja, a inscrição na Junta Comercial ou no Registro Civil não constitui, apenas declara. A propósito, no REsp 1.193.115-MT, a ministra Nancy Andrighi, obter dictum afirma: “Ainda que a lei exija do empresário, como regra, inscrição no Registro de Empresas, convém ressaltar que sua qualidade jurídica não é conferida pelo registro, mas sim pelo efetivo exercício da atividade profissional. Não por outro motivo, entende-se que a natureza jurídica desse registro é declaratória, e não constitutiva”.
Um exame do sistema geral adotado no Código Civil, que afastou o ato de comércio e adotou a teoria da empresa, também leva ao mesmo resultado, questão porém cuja discussão tomaria um espaço que a exiguidade do espaço jornalístico não permite.
Manoel Justino Bezerra Filho é professor do Mackenzie e da Escola Paulista da Magistratura e consultor jurídico na área empresarial.
Fonte: Valor Econômico