O julgador pode impor a aprovação do plano de recuperação judicial de uma empresa quando, apesar de ausentes os requisitos legais, verificar-se situação de abuso da minoria e posição individualista sobre o interesse da sociedade na superação do regime de crise empresarial.
Com esse entendimento e por maioria apertada de votos, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que é possível aprovar a recuperação judicial de uma empresa especializada em soluções para a internet, apesar de o plano apresentado ter sido rejeitado por seu principal credor.
O Banco do Brasil foi o único credor a rejeitar o plano apresentado à assembleia de credores. A instituição financeira é detentora de 56,8% dos créditos da classe de credores quirografários (que não têm preferência e, com isso, recebem depois de credores tributários e com privilégios).
Pelas regras da Lei 11.101/2005, a recusa do Banco do Brasil seria suficiente para impedir a recuperação judicial e, consequentemente, levar a empresa à falência. O artigo 45 prevê que a aprovação do plano depende da aprovação de todas as classes de credores.
Já o artigo 58, parágrafo 1º, inciso I permite que o juiz conceda a recuperação judicial se as premissas do artigo 45 não existirem, desde que, entre outras exigências, exista o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à Assembleia.
O Banco do Brasil não aprovou a recuperação judicial porque o plano lhe pareceu muito prejudicial, ao propor um deságio de 60% da dívida, a qual será paga em 96 parcelas, cuja correção monetária será limitada a 4% ao ano. Assim, crédito de R$ 3,3 milhões se transformaria em R$ 1,3 milhão, dividido em parcelas de R$ 14 mil.
A sentença decidiu aplicar o cram down, instituto criado nos Estados Unidos que permite ao juiz impor a recuperação judicial aos credores que discordam do plano. O juízo entendeu que não seria razoável decretar a falência da devedora por conta da vontade de apenas um dos credores.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, afastou a existência do abuso de direito por parte do Banco do Brasil e observou que a recuperação judicial não poderia mesmo ser aprovada, por ausência dos requisitos legais.
No STJ, o caso dividiu opiniões. O julgamento foi iniciado em setembro de 2020 e encerrado apenas em março de 2022. Prevaleceu a maioria formada em torno do voto do relator, ministro Antonio Carlos Ferreira. Ele foi acompanhado pelos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Buzzi.
Com o resultado, a recuperação judicial não é automaticamente aprovada. O caso volta ao TJ-SP, para que siga na análise de outros temas levantados no processo, como a alegada distinção entre credores com garantia real e quirografários, a indevida novação em favor de coobrigados e outros.
Regras legais mitigáveis
Para o relator, a jurisprudência do STJ permite a flexibilização dos requisitos do artigo 58, parágrafo 1º da Lei 11.101/2005, notadamente nas hipóteses em que se evidenciar abuso de direito por parte do credor dissidente, como no caso.
Isso porque a orientação da corte é, também, a de interpretar alei no sentido da prevalência do princípio da preservação da empresa, mesmo que em detrimento de interesses exclusivos de determinadas classes de credores.
Em voto-vista, o ministro Salomão destacou que o voto dissidente de apenas um credor, mesmo que representando a maioria dos votos presentes na assembleia, não pode ser tomado como representativo da vontade dos demais.
“Nessa linha de entendimento afirma-se que, também no caso em exame, inclusive visando evitar eventual abuso do direito de voto da minoria, justamente no momento de superação de crise, é necessário que se confira certa sensibilidade à verificação dos requisitos do cram down“, defendeu o ministro Salomão.
O ministro Marco Buzzi seguiu a mesma linha, ao destacar que, apesar de a lei fazer referência a requisitos objetivos e aparentemente rígidos para a concessão do cram down, o juiz está apto a mitigar esses pressupostos para observar os princípios da preservação da empresa e da proibição do abuso de direito.
“Ou seja: a abusividade do direito de voto do credor pode e deve constituir fato de mitigação a ser ponderado pelo juiz na concessão do benefício da recuperação judicial no sistema do cram down“, resumiu.
Não há abuso do credor
Abriu a divergência e ficou vencida a ministra Isabel Gallotti, que identificou óbices processuais à análise do caso pelo STJ. Mesmo se superados, concluiu que a mitigação dos requisitos legais para o cram down é inviável, pois as supostas ilegalidades e abusividades cometidas para com o Banco do Brasil no plano não bastam para tornar abusiva a recusa do mesmo pela instituição.
“O entendimento do STJ acerca do tema tem em mira evitar eventual abuso do credor, cujos créditos sejam minoritários, em face do princípio da preservação da empresa. O princípio da preservação da empresa, entretanto, tão caro ao nosso sistema legal, de inegável importância social e econômica, não deve ser mantido a qualquer custo. Cabe ressaltar que há também custo social quando se impõe limitação excessiva ao crédito”, defendeu.
Para a ministra Gallotti, voto contrário do Banco do Brasil não visou prejudicar concorrentes ou obter benefícios exclusivos. Além disso, não há prova de que o recebimento nas condições previstas no plano lhe seria mais benéfico do que a liquidação da empresa.
“Cuida-se do principal credor, daquele que mais contribuiu com recursos para o fomento da atividade da empresa e que, portanto, naturalmente deve ter maior poder de interferir com suas decisões na assembléia de credores”, acrescentou.
Também ficou vencido o ministro Raul Araújo, que fez uma crítica no sentido de se dar ao cram down uma imposição mais baseada nos termos em que é efetivada nos Estados Unidos do que como previsto pela legislação brasileira.
“Ocorrerá aqui uma verdadeira expropriação dos créditos do banco”, disse, relembrando que o plano reduz uma dívida de R$ 3,3 milhões para apenas R$ 1,3 milhão, a qual ainda será paga em oito anos, sem juros e com correção monetária limitada. “Parece-me realmente muito violento para o credor”, concluiu.
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AREsp 1.551.410
Fonte: ConJur