Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira
Importante decisão foi tomada pela Primeira Turma do STJ, no julgamento do agravo em recurso especial 309.867, que admitiu a participação de empresa em recuperação em procedimento licitatório sem a apresentação de certidão negativa de distribuição de processo de recuperação judicial.
A controvérsia examinada surgiu porque o artigo 31, inciso II, da Lei das Licitações, que é a lei 8.666/93, contém a seguinte exigência para participar da licitação (fase de habilitação):
“Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a: (…) II – certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física”.
A empresa recorrente, em recuperação judicial, sustentou que a exigência legal diz respeito a falência e concordata, sem alcançar o instituto da recuperação judicial; afirmou ser ilegal a exigência de apresentação de certidão negativa. Além disso, afirmou que o artigo 52, II, da lei 11.101/05, derrogou o referido dispositivo da lei de licitações.
O relator fez questão de registrar doutrina que defende a exigência de certidão, sob pressuposto de que há presunção de insolvência sobre o devedor em recuperação judicial, mas não a acompanhou. Preferiu doutrina em sentido contrário, que disse “se a Lei de Licitações não foi alterada para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, não poderia a Administração passar a exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa”.
Depois de invocar o escopo do artigo 47 da lei 11.101/05, concluiu o voto vencedor: “Entendo, portanto, incabível a automática inabilitação de empresas em recuperação judicial unicamente pela não apresentação de certidão negativa, principalmente considerando que a lei 11.101, de 9/2/2005, em seu art. 52, I, prevê a possibilidade de elas contratarem com o Poder Público, o que, em regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação”.
Consta do acórdão, ainda, o parecer exarado pela AGU, segundo o qual a apresentação de certidão positiva não é causa de imediata inabilitação, devendo ser examinada a real situação econômico-financeira da empresa.
Por fim, o acórdão invoca precedente do STJ, que é a AgRg na MC 23.499, j. 18/12/2014.
Pois bem. O assunto não é de simples solução nem de pouca relevância. Existem empresas que se dedicam, precipuamente, a prestar serviços e vender bens ao poder público e, portanto, participam regularmente de licitação. A distribuição da recuperação judicial pode representar o fim da empresa caso ela seja automaticamente proibida de concorrer em processos licitatórios. O remédio transformar-se-ia em veneno letal.
O primeiro ponto digno de relevo é de ordem constitucional. O artigo 37, XXI, da Constituição Federal, diz que somente as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações serão feitas pela lei. A qualificação econômica é um mandamento constitucional, e é bastante razoável que assim seja, pois a idoneidade para a contratação é de observância tanto no âmbito privado como no âmbito público.
Pode se discutir se a apresentação de certidão negativa é um elemento aferidor da qualificação econômica, pois, ao menos em tese, uma empresa em recuperação pode ostentar tanto a qualificação técnica como a qualificação econômica para contratar com o poder público. A certidão apenas relata a pendência do processo de recuperação, sem nenhum conteúdo a mais, sem permitir qualquer conclusão sobre a concreta situação da empresa.
Uma outra interpretação diria que a certidão mostrando a distribuição da recuperação judicial é índice de crise, o que seria suficiente para afastar o concorrente do certame. Essa interpretação representaria, por certo, uma presunção abstrata de incapacidade econômica, à qual não se pode chegar, pois somente a verificação concreta de cada empresa à luz do edital expedido pela administração pública e de seu objeto é que autorizará conclusão a favor ou contra a empresa.
A recuperação judicial evidencia que a empresa tem dívida; segundo a prática, a maioria das dívidas são de natureza bancária. Ora, uma empresa pode ter dívida bancária, não ajuizar recuperação judicial e participar do processo licitatório (superar a fase de habilitação). A exigência de certidão dispensaria tratamento diferente a duas empresas que estão, substancialmente, em pé de igualdade, pois ambas possuem dívidas; a diferença é que uma dívida é de conhecimento público, atestada pela certidão, e a outra dívida não é de conhecimento público, estando, por certo, apenas registrada nos livros contábeis da empresa, que são sigilosos (Código Civil, art. 1.190-1.191). A publicidade do processo de recuperação poderia favorecer uma concorrente que conta com o sigilo de sua contabilidade, e que poderia, em tese, estar com a mesma dificuldade financeira da empresa em recuperação. Nessa circunstância, o princípio da igualdade vem à tona.
O STF decidiu, no julgamento da ADI 3.735, que “a igualdade de condições dos concorrentes em licitações, embora seja enaltecida pela Constituição (art. 37, XXI), pode ser relativizada por duas vias: (a) pela lei, mediante o estabelecimento de condições de diferenciação exigíveis em abstrato; e (b) pela autoridade responsável pela condução do processo licitatório, que poderá estabelecer elementos de distinção circunstanciais, de qualificação técnica e econômica, sempre vinculados à garantia de cumprimento de obrigações específicas”. Nesse julgamento, de relatoria do Min. Teori Zavascki, o Min. Ricardo Lewandowski consignou que “Todos nós sabemos que a Lei 8.666, a Lei das Licitações, é extremamente complexa, inviabiliza as licitações na prática e facilita as fraudes”.
A exigência pura e simples de certidão como mecanismo de inabilitação da empresa em recuperação judicial não se afina com o princípio constitucional da igualdade que rege a exigência de licitação, pois o simples fato de um conjunto de dívidas tornar-se público, a ponto de constar de uma certidão emitida pelo Poder Judiciário, não deve afastar o devedor que compete com outro, igualmente com dívidas, que, entretanto, não são públicas.
O documento público, a certidão de distribuição da recuperação judicial, apenas atesta, formalmente, a existência de dívida, e a disposição do devedor de entender-se com os seus credores. Não se pode extrapolar o seu significado e extrair conclusões que não se ajustam ao mandamento constitucional.
É evidente que o poder contratante tem o direito de ser informado (e o dever de informar-se) sobre a situação financeira de quem pretende participar de licitação, mas a ausência de certidão não é decisiva para o poder público e pode ser completamente dispensada, sem prejuízo algum.
Aliás, a certidão pode ser suprida por outro meio de informação, como, por exemplo, o constante do artigo 69, que exige seja acrescido após o nome empresarial a expressão ‘em recuperação judicial’. Com isso, ainda na fase de habilitação, o poder público obrigatoriamente já será informado da situação da devedora, sem a necessidade da certidão.
É certo que, pela lei 8.666/91, a certidão, sobre ser documento informativo, é uma barreira à participação na licitação, em qualquer circunstância, o que, por certo, é uma demasia. A exigência da fase de habilitação deve ser proporcional, e coerente com o objeto da futura contratação. Saber da existência de dívida pouco auxilia o poder público, que não está dispensado de proceder à verificação da capacidade econômico-financeira. Não por outra razão a lei 8.666/93, estatui que para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados exclusivamente a documentação relativa a “qualificação econômico-financeira” (Art. 27, III). E o artigo 31, além da certidão, exige a apresentação de demonstrações financeiras “que comprovem a boa situação financeira da empresa”.
Tal comprovação permitirá ao poder público examinar o mérito, examinar o que realmente interessa para fins de se chegar à contratação. Pode ser que um concorrente apresente certidão negativa de distribuição de recuperação judicial, mas não passe no requisito que interessa, isto é, a comprovação da boa situação financeira da empresa; e vice-versa.
No caso apreciado pelo STJ, o plano de recuperação já havia sido aprovado. Esse é um ponto decisivo a ser enfatizado. Ora, se a dívida foi reestruturada, ao menos em tese ela cabe no fluxo de caixa do devedor. Presume-se então que ocorreu o saneamento financeiro da empresa. Nessa circunstância, não deve existir nenhum obstáculo de ordem formal à participação da empresa no mercado, ainda que para participar de licitações. Possuir dívidas não é necessariamente um sinal de crise; o controle do passivo à luz do fluxo de caixa da empresa é inerente à atividade empresarial, e o financiamento por meio de terceiros, seja para a expansão da atividade seja para capital de giro, é negócio corriqueiro no meio empresarial.
Esse fato, a pendência de recuperação judicial, por si só, não deve ser obstáculo à participação em licitação, nem é fator conclusivo sobre capacidade econômico-financeira.
A reestruturação da dívida, por meio do processo de recuperação pode, na realidade, fortalecer a empresa, que estará financeiramente mais equilibrada e com mais aptidão para atuar no mercado. A barreira da certidão não se justifica, o que não dispensa, por óbvio, o exame casuístico da capacidade econômico-financeira.
Podemos dizer, a bem da verdade, que a dificuldade à empresa, que, no caso julgado pelo STJ, gerou a necessidade de impetração de mandado de segurança para participar do certame, não é causada somente pela lei das licitações.
A própria lei 11.101/05 também contribui para essa dificuldade do devedor. Como se sabe, a lei instituiu o que se convencionou chamar de período de fiscalização. Após a aprovação do plano de recuperação, a empresa “permanecerá em recuperação judicial” pelo prazo de dois anos, diz o artigo 61. Esse dispositivo causa embaraços à empresa. Mesmo com a reestruturação do seu passivo, o simples fato de se encontrar em recuperação judicial dificultará o acesso ao crédito e à obtenção de novos contratos, como aqueles que são celebrados com o poder público, que dependem de licitação. a aprovação do plano de recuperação implica a reestruturação do passivo e a sua acomodação ao fluxo de caixa, liberando a empresa para empreender sua vida econômica.
A artigo 61 dilata a agonia do devedor, pois causa-lhe embaraços no quotidiano dos negócios, e foi um fator que levou à impetração do mandado de segurança e o recurso julgado pelo STJ; o período de supervisão não se justifica.
Caso a nossa lei previsse, após a aprovação do plano de recuperação judicial, o encerramento imediato do processo, a empresa estaria livre para seguir seu caminho, agora com o passivo reorganizado. E apresentar-se-ia perante o mercado e seus concorrentes em igualdade de condições. Sem o sinal de estar em crise, que é a obrigatória menção ao fato de estarem recuperação judicial em todos os atos, contratos e documentos firmados (art. 69).
Chama a atenção, por fim, o registro do relatório do acórdão, segundo o qual o juízo universal expede certidão mensal para atentar a plena capacidade econômico-financeira da recuperanda. À luz da jurisprudência do STJ, não cabe ao Judiciário o exame do conteúdo econômico-financeiro do plano de recuperação judicial, e, por maioria de razão, atestar a capacidade econômico-financeira da recuperada.
O caso em apreço mostra que a lei 11.101/05 precisa ser alterada, para prever, após a aprovação do plano de recuperação, a extinção imediata do processo, liberando a empresa para atuar livremente no mercado, inclusive perante o Poder Público; a lei das licitações também precisa ser alterada, para afastar a exigência de apresentação de certidão, que não tem o condão de, por si só, proteger o poder público.
Fonte: Migalhas