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GARANTIA DE RECEBÍVEIS É COLOCADA EM XEQUE

Por Talita Moreira

Uma decisão relacionada à recuperação judicial da Livraria Cultura deixou bancos e advogados em alerta. Ao analisar um recurso apresentado pela companhia, a 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a livraria poderia reter parte dos recebíveis de suas vendas com cartões de crédito, embora esses ativos sejam garantia de empréstimos bancários e estejam fora da recuperação judicial.

Durante os 180 dias de proteção contra credores, a Cultura poderá reter o volume de recebíveis necessário para girar suas operações – um cálculo que tem sido feito mês a mês. O restante vai para o banco que tem esses ativos em garantia. A decisão é uma liminar concedida pelo desembargador Hamide Bdine.

A medida coloca em xeque o instrumento da cessão fiduciária de recebíveis dados em garantia em operações de crédito, amplamente usado no mercado para financiar empresas varejistas e de serviços. Abre, também, mais uma frente de discussão sobre a chamada trava bancária – mecanismo pelo qual os bancos concentram o fluxo de recebíveis de cartões de um estabelecimento para oferecer empréstimos em condições mais favoráveis.

A decisão pegou os bancos no contrapé, porque tal entendimento não está expresso na lei de falências e também não há uma jurisprudência nesse sentido. As instituições financeiras usam com frequência a alienação e a cessão fiduciária, em diversas modalidades de crédito, para ter acesso mais firme aos bens dados em garantia e porque eles, em tese, não são objeto de recuperação judicial.

Credor da livraria, o Itaú Unibanco afirmou, por meio de uma nota, que “acredita e defende no processo a legalidade da garantia de cessão fiduciária, a qual não está sujeita aos efeitos da recuperação judicial”. Casos como esse já vinham aparecendo aqui e ali, mas o da Cultura é emblemático por se tratar da maior empresa contemplada por esse tipo de decisão.

Na recuperação judicial da Livraria Saraiva, a questão sobre o uso dos recebíveis também veio à tona. Mas, nesse processo, a decisão da 2ª Câmara de Direito Empresarial foi diferente. A companhia não poderá dispor dos recursos, mas o Banco do Brasil, que tem os recebíveis de cartão como garantia de operações de crédito, também não poderá acessá-los durante os 180 dias do processo.

Houve ainda uma discussão parecida na recuperação judicial da Avianca. A exemplo do que aconteceu na Saraiva, a companhia aérea conseguiu o bloqueio dos recebíveis durante os seis meses do processo numa conta em juízo. Porém, o banco Daycoval obteve recurso na 2ª Câmara derrubando essa decisão. Procurado, o banco não quis comentar o assunto.

Um executivo de uma instituição financeira vê sinais de “ativismo judicial” em decisões como essas – que, segundo ele, não têm respaldo na lei nem nos contratos. Como consequência, diz, os bancos provavelmente vão tomar menos risco em operações de crédito desse tipo. “No futuro, gente que teria acesso a esse crédito deixa de ter.”

Para se proteger, algumas instituições financeiras têm adotado a prática de acelerar a cobrança de dívidas quando percebem que uma companhia caminha para a insolvência (ver Insegurança jurídica faz instituição rever condições).

“Se tem alienação de recebíveis garantindo uma operação, você não pode chegar e dizer ‘vou retirar isso aqui’. É um direito líquido e certo”, afirma outra fonte ligado ao setor financeiro. A expectativa desse interlocutor é que decisões desse tipo sejam facilmente derrubadas.

O advogado André Moraes Marques, do escritório Pinheiro Neto, observa que, até agora, prevalecia entendimento de que recebíveis não são bens de capital e, portanto, não entram em recuperações judiciais e falências. A profusão de decisões cria insegurança jurídica para empresas e credores nesses processos, diz.

Outro advogado, que falou sob condição de anonimato, afirma que o caso da Cultura cria um precedente negativo para a cessão fiduciária e, se prevalecer essa visão, pode levar os bancos a aumentar as taxas de juros em operações de crédito. “Essa garantia passa a valer muito pouco”, afirma.

“É uma discussão bem acalorada”, acrescenta Fabiana Solano, do Felsberg Advogados, que representa a Livraria Cultura na recuperação judicial. Apesar de não ser o entendimento mais comum, a empresa apresentou recurso para ter acesso aos recebíveis porque 70% de suas vendas são com cartão e, sem esse dinheiro, teria dificuldades para sobreviver, explica a advogada.

O juiz de primeira instância, Paulo Furtado, negou o pedido, alegando que esse tipo de garantia é praxe no mercado e, portanto, estaria fora da recuperação judicial (acessível, portanto, aos bancos). No entanto, acabou decidindo que poderiam ser liberados os recursos essenciais à sobrevivência da empresa, caso ela conseguisse comprová-lo.

Tanto a Cultura quanto os credores recorreram da decisão, e na liminar o desembargador Bdine mudou entendimento anterior dele. Disse que a garantia em recebíveis é válida (para os bancos), mas manteve a decisão da primeira instância segundo a qual a Cultura pode usar os valores essenciais se demonstrá-los a cada mês.

As visões diferentes sobre a questão da cessão fiduciária criam insegurança jurídica e dificultam o encaminhamento dos processos, afirma Fabiana. “É um fator que tem o condão de definir o fracasso ou o sucesso de uma recuperação judicial”, diz.

Fonte: Valor Econômico

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