Por Joice Bacelo | De São Paulo
Uma decisão da Justiça do Rio de Janeiro impede que associações civis rejeitem o acesso de empresas em recuperação judicial aos seus quadros – mesmo que o veto esteja previsto em normas internas. O entendimento, da 7ª Vara Empresarial, se deu em um processo envolvendo a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), entidade sem fins lucrativos que tem como principal atrativo a compra de energia por menor preço.
O pedido foi ajuizado por uma indústria do agronegócio que teve negada a adesão à câmara por se encontrar em regime de recuperação judicial. Segundo informou ao juiz, se fosse aceita, teria uma economia mensal de R$ 250 mil com o consumo de energia elétrica – cerca de 40% do gasto atual.
Na decisão, o juiz Paulo Assed Estefan afirma que proibir o acesso de uma empresa que pretende se beneficiar de instrumentos legais para reduzir custos unicamente por ela estar em recuperação viola, na essência, a própria Lei de Recuperação Judicial e Falências (nº 11.101, de 2005). “Se o objetivo da lei é viabilizar a superação da situação de crise, se mostra contraproducente impedir que a recuperanda se filie”, diz o magistrado.
Ele ponderou ainda que ao ser deferido o processamento da recuperação judicial é conferido à empresa a prerrogativa de dispensa de apresentação de certidões negativas – conforme consta no inciso 2º do artigo 52 da lei. O dispositivo estabelece que a dispensa de tal documento será determinada “para que o devedor exerça as suas atividades”. Há exceção para os casos de contratação com o poder público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais. A CCEE foi criada por meio do Decreto nº 5.177, de 2004, e está sob regulação e fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Funciona como um ambiente de comercialização livre de energia. Geradores, distribuidores e consumidores têm liberdade para negociar e estabelecer em contrato os volumes de compra e venda de energia e os seus respectivos preços. É por isso que os valores envolvidos costumam ser mais baixos que os do mercado regulado.
No processo, a CCEE alega que a exigência de apresentação de certidão negativa de falência e recuperação judicial para a adesão de novos membros tem por objetivo “a mitigação de riscos” para o mercado. “A inadimplência de um agente participante deste mercado é capaz de afetar todos os demais 3,5 mil agentes que participam desse ambiente (consumidores, distribuidores e geradores)”, diz o órgão em sua defesa.
Representante da empresa em recuperação judicial, a advogada Juliana Bumachar, do escritório Bumachar e Advogados Associados, afirma, no entanto, que a posição da CCEE coloca em cheque o princípio da isonomia e, principalmente, do interesse público da preservação da empresa – contrariando viés constitucional que prioriza os valores do trabalho e da iniciativa privada.
Ela chama a atenção ainda que há jurisprudência consolidando posição inclusive para a dispensa de certidão negativa para contratação de empresas em recuperação judicial com o poder público. Mesmo, neste caso, havendo previsão expressa na lei em sentido contrário. “Existem decisões do STJ [Superior Tribunal de Justiça] no sentido de que a empresa pode licitar com o poder público estando em recuperação, quando a própria lei proíbe. Então por que não poderia aderir a uma câmara de energia? Não faz sentido”, diz a advogada.
Há, porém, precedente desfavorável envolvendo a CCEE. Trata-se, no entanto, de matéria analisada antes de o STJ se manifestar sobre a contratação com o setor público. Foi julgada em 2011 pela extinta Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Na ocasião, os desembargadores paulistas entenderam que o Judiciário não poderia determinar a “adesão compulsória ao procedimento de comercialização à revelia do que dispõe as normas e regulamentos internos” de uma entidade privada.
Especialista na área, Adriana Conrado Zamponi, do escritório Siqueira Castro, descreve a CCEE como uma pessoa jurídica de direito privado atípica. “Porque tem uma presença muito marcante do Estado”, diz. A advogada destaca que, além de criada por decreto e disciplinada pela Aneel, a câmara depende de autorização até para alterar o seu estatuto social e mesmo o cargo de presidente depende de indicação do Ministério de Minas e Energia.
Para a advogada, a decisão da Justiça do Rio está em consonância com o posicionamento que vem sendo adotado por ministros do STJ. Ela cita flexibilização em relação à exigência por certidões não só nos casos de contratação com o poder público, mas também para a adesão de programas de parcelamento de débitos tributários. “Essa relativização é justamente para tentar recuperar a empresa. Flexibilizar essa exigência facilita para a redução de custos e, consequentemente, para a recuperação.”
O advogado Fernando Bilotti Ferreira, sócio do escritório Santos Neto, entende que haveria sentido em exigir a apresentação somente de certidão de falência. “Porque, nesse caso, a empresa já não é mais ativa. É diferente das que estão em regime de recuperação”, pondera. Ele considera como “duras demais” as regras que preveem a proibição de companhias em regime de recuperação judicial, principalmente porque as obrigações assumidas após o deferimento do processo não se sujeitam ao plano de pagamento acordado em juízo.
Procurada pelo Valor, a CCEE, por meio de sua assessoria de imprensa, informou apenas que irá cumprir a decisão judicial.
Fonte: Valor Econômico